quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Culpa, ressentimento e a inversão dos valores em Nietzsche

Para ser feliz, o homem precisa afirmar sua potência de vida. Quando essa é reprimida, ele leva uma existência submissa, apenas reativa. Sentimentos como culpa e ressentimento decorrem de valores estabelecidos pelo homem reativo


Por Amauri Ferreira

Com a interpretação sacerdotal, os homens fortes passam a ser culpados pela desgraça dos fraco

Os valores reativos triunfam por meio da multiplicação cada vez maior dos doentes. Quando Nietzsche diz que é necessário proteger os fortes contra os fracos, é precisamente pelo fato dos fracos, por se organizarem em rebanho, serem a maioria, envenenando toda vida saudável pela acusação ressentida. Então, os fortes abaixam a cabeça e pedem clemência - os seus instintos tornam-se reprimidos, assim como os do rebanho, e poderão participar, enfim, dos "benefícios" da sociedade reativa.

Mas a rebelião dos escravos tem um complemento, que é a interpretação da má consciência como a consciência da dívida, operada pelo sacerdote cristão: "Apenas nas mãos do sacerdote, esse verdadeiro artista em sentimentos de culpa, ele veio a tomar forma - e que forma! O 'pecado' - pois assim se chama a interpretação sacerdotal da 'má consciência' animal (da crueldade voltada para trás) - foi até agora o maior acontecimento na história da alma enferma

O "golpe de gênio do cristianismo", realizado pelo judeu Paulo de Tarso, consiste na interpretação da morte de Jesus Cristo como uma redenção pelos pecados de toda a humanidade. Dessa forma, o sentimento da dívida torna-se infinito: "[...] o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível - o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!..." (Genealogia da moral, segunda dissertação, 21). Apesar do cristianismo inventado por Paulo ter dividido a humanidade em duas (antes e depois de Cristo), o Deus cristão não se opõe ao Deus judaico - é, sobretudo, a continuação dos valores nascidos do ressentimento e da negação da vida. Afinal, o "reino de Deus" é a promessa da felicidade eterna para quem? Para os sofredores, oprimidos, doentes, isto é, todos os que estão com a sua vontade de potência entravada.

"Se a fé não tornasse feliz, não haveria fé: então quão pouco valor ela deve ter!" NIETZSCHE

Como o poder da igreja depende que seus seguidores sintam-se pecadores, ela inventa proibições para que, somente assim, haja transgressão e, consequentemente, sentimento de culpa. Proibir o adultério, o uso de preservativos, o aborto, a eutanásia, etc., são dispositivos que servem para nascer, naquele que sofre, a consciência da dívida. Então, basta que o indivíduo tenha apenas o desejo de transgressão para que isso seja a "prova" suficiente do seu pecado e, como isso representa uma ameaça à salvação da sua alma, é inevitável que ele recorra, mais uma vez, ao poder sacerdotal: "A desobediência a Deus, isto é, ao sacerdote, à 'Lei', recebe então o nome de 'pecado'. [...] Psicologicamente, em toda sociedade organizada em torno ao sacerdote os 'pecados' são imprescindíveis: são autênticas alavancas do poder, o sacerdote vive dos pecados, ele necessita que se peque... Princípio supremo: 'Deus perdoa quem faz penitência' - em linguagem franca: quem se submete ao sacerdote" (O Anticristo, 26).

Nietzsche diz que é necessário proteger os fortes contra os fracos, porque os fracos são maioria e envenenam toda vida saudável com acusação ressentida

O bom e o mau segundo Nietzsche

Em Genealogia da Moral, Nietzsche tenta mostrar que a moral - que define, entre outras coisas, o que é bom e o que é mau - é um conceito que surge num lugar e num tempo determinado, ou seja, é relativo e foi inventado pelo homem. A moral não é Metafísica (explicada por algo além do mundo material) e nem atemporal. Ao investigar como surgiu entre os povos o juízo de bom e mau, Nietzsche afirma que há duas morais: a do senhor e a do escravo. A do senhor afirma a vida e baseia o bom no que há de positivo em si (ser belo, forte), enquanto o ruim é quem está limitado ao aspecto reativo da existência (ser humilde, fraco). A do escravo surge do ressentimento, vê o forte como mau e, por oposição, ele próprio, como sendo o bom. Nietzsche dis que o judaísmo e, em seguida o cristianismo, consolidou a moral do escravo como a única vigente. Com isso, houve uma inversão daquilo que os próprios nobres consideravam bom. Segundo a avaliação do sacerdote judeu ou cristão, o bom (na moral do senhor) passa a ser considerado mau e o ruim (que é o fracona moral do senhor) passa a ser considerado bom.

Complemento da redação


http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/36/artigo141682-3.asp

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